O PRR é uma oportunidade única para transformar o setor público — mas é preciso garantir continuidade
Entrevista a João Couras, Executive Director da Claranet Portugal, no Digital Inside

Para João Couras, o setor público português está no caminho certo, mas o sucesso desta transformação dependerá da capacidade de manter o investimento, garantir estabilidade na governação e valorizar o talento das pessoas.
O setor público português vive um momento decisivo no seu processo de transformação digital. A execução dos fundos do PRR, a pressão crescente da transição para modelos cloud e o advento da inteligência artificial estão a reconfigurar as prioridades e a desafiar as equipas técnicas e de gestão do Estado.
Para compreender melhor o momento e as perspetivas futuras, o Digital Inside conversou com João Couras, Diretor Executivo da Claranet Portugal, uma das empresas mais ativas no apoio à modernização tecnológica da Administração Pública.
Qual é, atualmente, a importância do setor público para o negócio da Claranet Portugal?
O setor público é de facto muito relevante para a Claranet Portugal, não só pela sua dimensão, sendo um dos maiores investidores em tecnologias de informação, mas também pelo impacto indireto que tem na economia e na vida dos cidadãos. Representa quase metade do nosso volume de negócios.
Queremos ser um parceiro de confiança na modernização e na inovação dos serviços públicos, contribuindo para a transição digital das organizações em todas as suas dimensões — desde a cibersegurança à gestão de dados, até à adoção de novas tecnologias como a inteligência artificial.
Atualmente, vivemos uma fase de forte investimento impulsionada pela execução do PRR. O desafio será garantir a continuidade desses projetos depois do término dos fundos comunitários. O setor público é menos afetado por ciclos económicos negativos, mas depende fortemente do orçamento de Estado. A questão será saber se haverá capacidade financeira e política para manter este ritmo de evolução.
A transformação digital do setor público nem sempre acompanha o ritmo da tecnologia. Quais têm sido os principais obstáculos?
O maior desafio continua a ser a governança. É uma estrutura naturalmente complexa e sujeita a constantes mudanças de direção e prioridades políticas. Isso cria descontinuidade nos projetos e nas estratégias de médio e longo prazo.
Felizmente, tenho notado melhorias. Há hoje mais estabilidade e mais consciência da importância da continuidade. Mas ainda é preciso consolidar. Existe muito valor e capacidade dentro das entidades públicas, contudo, os ciclos políticos acabam por travar avanços que exigem visão prolongada e consistência.
Por outro lado, há também uma limitação natural de recursos humanos especializados. É difícil, em qualquer organização, manter as equipas atualizadas ao ritmo acelerado da tecnologia. Por isso, procuramos ser um parceiro que complementa e capacita, tanto em termos técnicos como na formação e apoio à implementação.
O Plano de Recuperação e Resiliência tem sido decisivo para a digitalização do Estado. Está a ser bem executado?
De uma forma global, sim. O PRR é uma oportunidade única para acelerar a transformação digital do setor público e, no geral, os fundos estão a ser bem aproveitados. É natural que existam casos pontuais em que o investimento poderia ter outro destino, mas isso é residual.
O principal problema são os atrasos administrativos, que em alguns casos são difíceis de justificar e podem comprometer a execução dentro dos prazos. O tempo, neste contexto, é inimigo da boa execução.
Além disso, é essencial que os projetos financiados sejam transformadores e sustentáveis, e não apenas um complemento a orçamentos insuficientes. Precisamos de garantir que as soluções implementadas criam valor duradouro e não desaparecem quando o financiamento termina.
O tema da cloud tem ganho novo fôlego, mas ainda há receios. Quais são os principais entraves à adoção?
Hoje, os maiores receios estão relacionados com a segurança e soberania dos dados — preocupações que voltaram a ganhar força com o contexto geopolítico atual.
Por outro lado, há também a imprevisibilidade dos custos da cloud pública e a necessidade de garantir continuidade de serviço. O setor público lida mal com custos variáveis e orçamentos não fixos.
A nossa resposta tem sido uma oferta híbrida, que combina cloud pública e privada, permitindo às organizações escolher onde cada workload deve residir, consoante a sensibilidade dos dados, a latência e o nível de risco. É uma abordagem pragmática e segura, que assegura a mesma experiência tecnológica em qualquer ambiente.
Como é que a Claranet Portugal ajuda a garantir a resiliência dos serviços digitais públicos perante o aumento das ameaças cibernéticas?
Ninguém pode garantir segurança absoluta — o tema não é “se”, é “quando”. O essencial é detetar e responder rapidamente.
Hoje, é indispensável ter serviços de monitorização 24/7, resposta imediata a incidentes e planos de continuidade de negócio bem definidos. Muitas organizações têm boas ferramentas, mas quando acontece um incidente, não sabem exatamente o que fazer.
Na Claranet Portugal temos um SOC (Security Operations Center) em Portugal e oferecemos um serviço completo, desde consultoria e prevenção até à resposta a incidentes e formação de utilizadores — um ponto crítico, já que grande parte dos riscos vem de comportamentos humanos.
Estamos também a preparar as organizações para o cumprimento da nova diretiva NIS2, através do nosso serviço 360 Security & Compliance, que permite às entidades públicas e privadas saber, em cada momento, o seu nível de compliance e as ações necessárias para melhorar.
As equipas do setor público estão mais preparadas hoje para lidar com a tecnologia?
Sim, tem havido evolução, mas ainda há caminho a percorrer. O sucesso de qualquer projeto depende da capacitação dos utilizadores e da adoção efetiva das ferramentas.
Muitas organizações fazem o investimento tecnológico e consideram o assunto resolvido, mas se as pessoas não usarem — ou usarem mal —, o investimento perde valor.
Por isso, temos uma equipa dedicada à formação e àquilo que chamamos de serviço de adoção, que acompanha as equipas na prática diária, mostrando como tirar o máximo partido das soluções.
Além disso, trabalhamos lado a lado com as equipas técnicas dos clientes, permitindo-lhes ganhar conhecimento e acompanhar a evolução tecnológica. É um processo contínuo e exigente, tanto para as entidades públicas como para as privadas — e até para nós próprios.
Que papel terão a inteligência artificial e a automação no futuro da administração pública?
A inteligência artificial vai ser decisiva. Vai apoiar a decisão, automatizar processos e permitir uma personalização inédita dos serviços ao cidadão.
Estamos já a implementar projetos de automação e gestão inteligente de dados em várias áreas — educação, saúde e serviços públicos —, sempre com foco em segurança, ética e transparência.
Há casos em que estamos a criar ambientes privados de IA, como versões internas do ChatGPT para organismos públicos, garantindo que os dados sensíveis nunca saem do seu perímetro. É um passo fundamental para dar confiança às entidades e acelerar a inovação.
Acredito que a IA vai romper com os modelos tradicionais de desenvolvimento tecnológico: os ciclos longos vão dar lugar a respostas quase imediatas. Mas isso exigirá investimento contínuo em formação e visão estratégica a longo prazo.
A Claranet Portugal é parceira do Portugal Digital Summit. O que representa este evento para o mercado?
É um espaço essencial de partilha e atualização. Hoje, é muito difícil manter as equipas atualizadas, e eventos como o Portugal Digital Summit permitem, em pouco tempo, abrir horizontes, conhecer tendências, trocar experiências e compreender o que outros estão a fazer.
É também uma oportunidade para as próprias equipas apresentarem projetos e soluções, criando um ciclo de aprendizagem e inspiração que beneficia todo o ecossistema.
Para João Couras, o setor público português está no caminho certo, mas o sucesso desta transformação dependerá da capacidade de manter o investimento, garantir estabilidade na governação e valorizar o talento das pessoas. A transição digital não se faz de um salto — constrói-se todos os dias, e o tempo é o seu maior teste.
Entrevista publicada originalmente in Digital Inside